sex, 17 de fev/2012
FONTE: Ascom/OM
O historiador Jorge Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense, acaba de lançar mais um livro sobre o Trabalhismo, desta vez “João Goulart, uma Biografia”. Nele resgata a trajetória do presidente derrubado pelos militares em 64 que caiu, segundo Darcy Ribeiro, pelos seus méritos. O livro de Jorge Ferreira desqualifica os que rotulavam Jango de populista. “Populista é sempre o outro, aquele de quem você não gosta”, argumenta. Jorge Ferreira deu entrevista à “Folha de São Paulo”, que reproduzimos. (OM)Folha - Por que o sr. resolveu fazer esse livro?
Jorge Ferreira - Estudei Getulio Vargas e o trabalhismo, daí a curiosidade sobre João Goulart. Foram dez anos de trabalho. Creio que chegou o momento de retirar Jango do limbo da memória do país.
-- Ele foi um personagem importante, mas as análises sobre ele não se distanciam das paixões políticas. Ora é definido como demagogo e incompetente, ora como vítima de um grande conluio de empresários brasileiros com o governo norte-americano. Quis conhecer o personagem para compreendê-lo, e não julgá-lo.
O que encontrou de novo?
-- O livro é um relato biográfico, enfocando sua vida política e privada. Evitei enfoques sensacionalistas. Talvez a maior novidade seja lembrar à sociedade brasileira que um dia Jango foi líder político de expressão. Como diz o historiador inglês Eric Hobsbawm, o papel do historiador é lembrar à sociedade o que aconteceu no passado. Foi o que eu fiz.
Quais foram as influências sobre Goulart?
-- Goulart, assim como Brizola, era jovem quando Vargas instituiu a ditadura. Ele entrou para a política no período democrático. Em 1945 e 1946, a democracia liberal tinha grande prestígio. As esquerdas e o trabalhismo associaram os ideais democráticos com o nacionalismo, o desenvolvimentismo, as leis sociais e o estatismo.
Nos anos 1950, o Estado interventor na economia e nas relações entre patrões e empregados era um sucesso na Europa. Os trabalhistas observavam a experiência inglesa com o programa de estatizações e também o sucesso da industrialização soviética, com o Estado interventor e planejador da economia. Também culpavam os Estados Unidos pela pobreza da América Latina.
Por que há pouco dados sobre o empresariado em relação a Goulart e aos militares?
-- O golpe de 1964 não foi dado por empresários que usaram os militares. O golpe foi dado por militares com apoio empresarial. A Fiesp, em inícios de 1963, apoiou Goulart na efetivação do Plano Trienal. Ele teve apoio de setores conservadores, desde que estabilizasse a economia, controlasse a inflação e se distanciasse das esquerdas, sobretudo dos comunistas e dos grupos que apoiavam Brizola na Frente de Mobilização Popular.
Os grandes empresários, os políticos conservadores e a imprensa se afastaram de Goulart e passaram a denunciar o "perigo comunista" no segundo semestre de 1963, quando a economia entrou em descontrole e Jango se aproximou das esquerdas.
Com o comício de 13 de março de 1964, os golpistas crescem e se unificam. A revolta dos marinheiros foi a fagulha que faltava, desencadeando gravíssima crise militar. A crise do governo Goulart tem uma história. É preciso reconstituí-la, com documentos e provas, superando repetidos jargões.
No livro o sr. discute a questão do populismo. Por que populismo continua sendo um termo pejorativo?
-- Sou crítico em relação ao conceito de populismo. Populistas podem ser considerados Vargas e Lacerda, Juscelino e Hugo Chávez, Goulart e Collor, FHC e Lula.
Personagens tão diferentes, com projetos díspares, com partidos políticos distintos são rotulados sob o mesmo conceito.
Qualquer personagem político pode ser chamado de populista, basta não gostar dele. Populista é sempre o outro, o adversário, aquele de quem você não gosta.
Não se trata de um conceito teórico, mas de uma desqualificação política. Eu prefiro nomear os personagens assim como eram chamados na época: Jango era trabalhista, Lacerda, udenista, e Prestes, comunista.
Qual é o maior legado de João Goulart?
-- O governo Goulart foi o auge do projeto trabalhista, que começou com as políticas públicas dos anos 1930, em época de autoritarismo. Mas que se democratizou, se modernizou e se esquerdizou a partir da segunda metade dos anos 1950.
Seus elementos fundamentais foram o nacionalismo, o estatismo, o desenvolvimentismo, a intervenção do Estado na economia e nas relações entre patrões e assalariados, a manutenção e a ampliação dos benefícios sociais aos trabalhadores, a reforma agrária e a liderança política partidária de grande expressão. Creio que muitas dessas tradições inventadas pelos trabalhistas ainda estão presentes entre as esquerdas brasileiras.
Obra expõe conceitos políticos e ambiguidades da época
por ELEONORA DE LUCENA (FSP)
Houve no Brasil uma geração que defendeu o nacionalismo e a necessidade de mudanças profundas nas estruturas sociais e econômicas.
João Goulart (1919-1976) foi um expoente dela. Achava que poderia fazer as reformas de base a partir de pactos numa coalizão multiclassista.
Não conseguiu. Com esse pano de fundo, Jorge Ferreira constrói com vivacidade a biografia de Jango, que há 50 anos chegava à Presidência no olho de um furacão político, militar e econômico. Trata das ambiguidades do personagem, enfatizando o contexto daqueles tempos polarizados.
Jango entrou na política conversando com Getulio Vargas. Eram vizinhos perto da fronteira oeste do extremo Sul do país, em São Borja. Getúlio estava no ostracismo.
Jango já era um rico estancieiro, exímio negociante de gado. Encampou o "queremismo" e o trabalhismo.
Advogado, levado ao centro do poder por Getulio, aos 34, virou ministro do Trabalho. Segundo Ferreira, sua atuação nesse cargo chocou a elite: incentivou a ação de sindicalistas, aproximou-se da esquerda e pressionou pela duplicação do valor do salário mínimo. A direita, que o enxergava apenas como um playboy, passou a classificá-lo como um agitador.
Getulio deixou com Jango uma cópia da carta-testamento. Com essa herança, ele "revigorou o trabalhismo", agregando um perfil mais ideológico, na avaliação do historiador. "Getulio foi um nacionalista; Jango, um progressista". Foi vice de Juscelino Kubitschek (com mais votos). Depois, vice do traumático Jânio Quadros.
Com a renúncia, tomou posse na turbulenta implantação do parlamentarismo no país. Foi amparado pela surpreendente campanha da Legalidade de Leonel Brizola, que cindiu as Forças Armadas de forma inédita.
Um dos méritos do livro é expor muitos outros traços de Goulart, que teve sua história sempre encapsulada nos meses cruciais que antecederam a ditadura. Para ele, Jango "não propunha rompimentos, mas patrocinava compromissos". No ápice da crise, não reagiu por temer uma guerra civil.
Trazendo visões divergentes, o autor derrama os detalhes das articulações e pressões daquele momento: as atuações dos militares, das esquerdas, dos sindicalistas, dos empresários e dos EUA.
Trata das radicalizações. Das esquerdas embriagadas com a perspectiva de poder. Das insurreições militares. Das tramas arquitetadas por civis. Da atuação do governo norte-americano na derrubada da democracia.
"O medo do comunismo unificou as elites", escreve Ferreira. E levanta questões.
A acumulação capitalista precisava ali de autoritarismo? A esquerda estava à altura do desafio histórico? O golpe era inevitável? Por que o alardeado "dispositivo militar" não funcionou? Quais foram as diferenças do golpe de 64 em relação às outras rebeliões anteriores?
Para além do debate de fundo, Ferreira relata histórias da vida pessoal de Jango: a família, seus casos amorosos, o sucesso nos negócios, a depressão no exílio, a amargura por não ter um passaporte brasileiro (ganhou um paraguaio). Há passagens curiosas.
Numa delas, a mulher, Maria Thereza, conta como ficou surpresa ao preparar, na sua cozinha no apartamento em Montevidéu, carne mal passada para Jango e seu arqui-inimigo Carlos Lacerda. O político, que incentivara o golpe e se viu abatido por ele, procurou Jango para traçarem uma estratégia conjunta. "Como o mundo dá voltas", era o seu pensamento.
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